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sexta-feira, 8 de maio de 2009

CIVILIZAÇÃO FERIDA


PELA SUA BELEZA E OBJECTIVIDADE, ABAIXO TRANSCREVO UM ARTIGO DE OPINIÃO DA JORNALISTA " CLARA FERREIRA ALVES "




Uma civilização ferida
Clara Ferreira Alves
8:00 Segunda-feira, 4 de Mai de 2009




Lembrei-me de crepes chineses, nem sei porquê. Crepes chineses gigantes, enrolados em cobertores e lençóis sujos. A muitos nem se lhes vê a cabeça ou os pés. O corpo escondido dentro da manta, ou atrás de um caixote de cartão com as sobras do anúncio da televisão coreana com ecrã plano e alta definição. Os corpos em baixa definição, difícil perceber que ali dorme um ser humano, ou ressona, ou bate as pálpebras em vigília, dentro dos papéis amachucados e atrás dos cartões e dos sacos de plástico. Os sem-abrigo, sem casa, sem emprego, sem família, sem domicílio certo, sem título de cidadania. Há muito tempo que não via tantos em Lisboa a dormir ao relento e ao frio, porque o vento que sopra do rio é gelado de madrugada, antes de as primeiras gaivotas acordarem.

Estão por baixo das arcadas dos viadutos do caminho da cidade nova e do Parque das Nações, estão por dentro e por fora da Estação de Santa Apolónia, estão nas grutas naturais das arcadas do Terreiro do Paço, nos recantos da Praça do Município, nos pórticos cobertos do Teatro D. Maria, nos cantos do Rossio e nos degraus da Estação do Rossio. Estão no côncavo dos prédios de ruas e avenidas, nos portais das igrejas, nos bancos dos jardins. Certas zonas da cidade têm mais do que outras, talvez porque os sem-abrigo tenham a seu modo instituído um mapa da destituição, um bairro de itinerário e poiso dos seres sem morada certa. Juntam-se.

Os "crepes chineses" jaziam nos esconsos dos viadutos junto a Xabregas que ligam a Baixa ao aeroporto, à ponte, à auto-estrada do Norte, do Sul, à CRIL e à CREL e aos Eixos. Todas aquelas belas estradas que cortam uma Lisboa que nem sabemos onde fica ou que nome tem. Os carros por cima, na grande velocidade nocturna, e por baixo, visíveis para quem venha devagar ou pretenda fazer inversão de marcha, os corpos enrolados e quietos. Uma dúzia deles. Àquela hora nem os bons samaritanos andam a distribuir sopas e agasalhos.

O número aumentou e continua a aumentar. Houve um período, nos anos 90, em que Lisboa quase não tinha sem-abrigo nem pedintes. A maioria dos vagabundos era engrossada pelos drogados recuperáveis e terminais. Ou morriam como aves no Inverno ou se transformavam em sociedades unipessoais de arrumação de automóveis. Os arrumadores. Havia o grupo da sopa dos pobres e a malta do Casal Ventoso e dos bairros abarracados, que assombravam as ribanceiras e as fronteiras da cidade. Não havia o que há hoje, homens e mulheres, mais homens do que mulheres, nem sempre de nacionalidade portuguesa, que olham para nós com olhos duros e nem estendem a mão. Muitos não são pedintes, são desempregados, gente que o sistema deixou cair das malhas de protecção do Estado Social. Perderam o emprego, depois a casa, depois um domicílio certo, e a partir de certo estado de indigência, quando o cheiro a matéria humana afasta o que é humano, não há maneira de regressar ao mercado de trabalho ou à dignidade. Ou arranjar uma família ou um amor. Se não podemos abolir os pobres ou, como se diz agora, incluir todos os excluídos, também não podemos ignorar a mancha alastrada no chão. O que fazer com esta gente? Mais, o que fazer com esta gente quando andamos ansiosos sem saber o que fazer com nós mesmos?

Todos os dias abrimos um jornal, enquanto houver jornais, e vemos o futuro pintado de negro, números assustadores e profecias catastróficas. O futuro é evanescente, disperso entre as calamidades naturais do aquecimento global, o fim da sociedade de abundância e a queda dessa entidade abstracta e aterradora que é o sistema económico-financeiro do capitalismo democrático (visto que o não-democrático parece estar melhor equipado para sobreviver à crise). Abre-se um jornal e imagina-se o nome próprio inscrito na estatística negra. Aquele medo ancestral de acabar nas ruas, de acabar sem nada, começa a tomar conta de todos. Até dos mais ricos, porque os mais ricos têm mais a perder. Os mais ricos são diferentes dos muito ricos, que sofrem a ansiedade da perda relativa e não da perda absoluta. A única vantagem dos sem casa, a única mesmo, é que deixaram de ter essa ansiedade. Perderam o medo de perder tudo, porque já perderam. Talvez isso lhes dê alguma liberdade. É como dizer que os mortos têm a sorte de terem deixado de ter medo da morte.

Enrolados entre dois feriados, o de uma revolução pela liberdade e o da liberdade de trabalhar, celebramos exactamente o quê? O que temos ou o que temos a perder? Tantos anos passaram, tanto dinheiro mudou de mãos, e eles ainda ali estão, os sem-abrigo. Vestígios arqueológicos de uma civilização ferida.

Nota: Circula na net e na blogosfera um falso texto com a minha assinatura, que aparece como tendo sido publicado no Expresso, e que é um enunciado de injúrias a Mário Soares. O falsificador, anónimo, usou o meu nome para caluniar.

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